Transição para a vida digital - Hauer & Esmanhotto

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Transição para a vida digital

Neste trabalho propõe-se a examinar o fenômeno da transição para a vida digital, fato que vem causando inúmeros reflexos no cotidiano de cada um sem que, de fato, seja possível definir suas causas.

A história mostra que se hoje o tempo parece fluir mais velozmente do que no passado, certamente isto deve ser verdade. O ser humano com as características que o levaram, finalmente, à classificação “sapiens sapiens” (o homem que sabe que sabe), último estágio evolutivo da cadeia humana que surgiu há cerca de 4 milhões de anos foi, na ocasião, denominado “Australopithecus”. Após longa evolução, em cerca de 2,3 milhões de anos passados, surgiu o chamado “homo habilis” que já fabricava rudimentares ferramentas. Por volta de 1,5 milhões de anos, aquele deu lugar ao “homo erectus”, mas somente entre 400 mil e 100 mil anos, portanto ainda A.C., surgiu o “homo sapiens”. Contudo, os primatas que, segundo alguns, evoluíram para o homo sapiens, já estavam pisando este planeta por volta de 13 milhões de anos. O que teria, em primeiro lugar, causado tal evolução, considerando-se que primatas ainda convivem conosco? Em torno desse assunto, poderão ser encontradas as mais estranhas teorias, desde a intervenção extraterrena até os desígnios de alguma deidade como, também, o simples acaso evolutivo, resultado de causa e efeito aleatórios.

De qualquer forma, o ser humano aqui se estabeleceu e para que pudesse se multiplicar, desenvolveu a agricultura e a domesticação de animais entre 12 mil e 6 mil anos passados, permitindo que os grupos humanos pudessem se fixar em um só local deixando de ser nômades com o eram seus antepassados.

Ainda que  tais datas sejam aceitas como verdadeiras, na verdade são apenas resultado de especulação com testes de carbono 14 aplicados a fósseis, equipamentos, ferramentas e desenhos rupestres encontrados; mas muitos outros, eventualmente, já desaparecidos ou destruídos por eventos naturais, não estariam mais sujeitos ao teste de carbono 14 e poderiam esconder algo diferente que os escritos históricos, certamente, atestariam.

A ESCRITA

A forma gráfica pela qual se transmitem dados históricos à posteridade, só surgiu mais recentemente, ou seja, entre os sumérios e egípcios por volta de 5 mil anos e na Europa, só se tem notícia de que foram os romanos que divulgaram tal forma de registro, portanto, há pouco mais de 2 mil anos.

Com a escrita, provavelmente, a evolução se acelerou permitindo que o conhecimento e a cultura ficassem registrados para uso das gerações seguintes. No entanto, o registro da escrita era manual, feito em caracteres cuneiformes ou gravados em pedra, além de possíveis outros meios como os desenhos rupestres et alia que não chegaram ao nosso conhecimento por terem se apagado de alguma forma.

A possibilidade de registros com cópias, só foi possível após a invenção da imprensa por Johann Gutenberg – século XV -, que pela primeira vez, aplicou tipos reutilizáveis na impressão e reprodução de textos. Como se infere, é recente o registro de atos e fatos que possam ser lidos e compreendidos por gerações seguintes.

As palavras, por seu turno, uma vez impressas passaram a ter, aparentemente, um significado único, porquanto, diferentemente da linguagem oral que é mais ligada aos sons emitidos pela boca, a linguagem impressa teve de ser codificada para que cada sinal impresso tivesse o mesmo significado sob pena de não ser entendido.

Isso passou a ser aceito pelas diversas línguas em uso, de tal forma que a linguística passou a ser um ramo da filosofia que prega um significado preciso a cada palavra. No entanto, sabe-se hoje que a linguagem está sofrendo modificações profundas, via de sua utilização digital e já se encontram jovens que não entendem um texto tradicional, escrito com sujeito, verbo e predicado normais, pois só conseguem processar, mentalmente, sinais  que subentendem palavras, mas que não as são.

Sigmund Freud, médico vienense criador da psicanálise, já dizia no século XIX que as pessoas podiam ficar sujeitas ao “mal-estar civilizatório”, possivelmente decorrente do crescimento da sociedade humana. E isto podia ser debitado à estrutura social mais rígida, baseada em pressupostos de que “tem de ser assim, porque sempre foi”. Perspectivas assim geradas nem sempre se realizam trazendo como consequência, frustração e depressão.

A linguagem moderna, contudo, não mais se prende a significados precisos como anteriormente exigido pela filosofia e isto vem sendo demonstrado pela internet e derivados no cotidiano de todos. Portanto, é possível afirmar que a linguagem passou, de forma fluída, a significar “imagens” que variam de acordo com o contexto em que forem usadas. É hoje mais difícil definir o significado de uma palavra isolada, já que cada pessoa a colocará em seu próprio contexto podendo, assim, variar seu sentido. Bastará que observemos o que ocorre na comunicação em geral para confirmar essa questão.

EFEITOS PERCEBIDOS

De qualquer forma, manter equilíbrio nesse turbilhão fluídico, não será fácil e o crescimento da frustração e depressão demonstram isto. O ser humano, por sua natureza assustadiça, não consegue acompanhar as modificações que a vida social lhe impõe e introjetando tais reflexos, compromete sua psicologia. Exemplo mais recente disso vem da China em que o mal-estar civilizatório está levando o povo a buscar ajuda com psiquiatras e a psicanálise  como “técnica de modernização e de recodificação subjetiva” (Eu & Fim de semana – Valor de 25.10.19, por Joel Birman). O antropólogo francês Louis Dumont diz que no mundo oriental “a pessoa é enormemente marcada pelos valores coletivos, enquanto que nas sociedades ocidentais, modernas, há uma diversidade de percursos, pois os valores sociais são mais frouxos. (…) No oriente, a dimensão coletiva não pode ser desapontada”. Para amenizar os efeitos que estão levando um maior número de pessoas ao suicídio, usam os orientais a religião que para eles, é mais uma filosofia de vida fatalista do que promessa transcendental de alívio, esta mais afeita às religiões ocidentais .

FLUIDEZ DOS CONCEITOS

Ainda que baseada em pressupostos diversos, a parte ocidental da  humanidade também vem sofrendo os efeitos da acelerada mutação de conceitos. Segundo o jornal Valor Econômico de 28.10.19, p. E1, foi apurado elevado nível de “transtorno mental” no ramo jurídico brasileiro, afetando 30% dos advogados e 60% dos procuradores (!) e o sintoma de “burnout” ou esgotamento, dificuldade de concentração, falhas de memória e distúrbios de humor, já são considerados acidentes laborais pelo Tribunal Superior do Trabalho no Brasil.

Mas como definir o que vem acontecendo? Na verdade, a estrutura social não é fixa como se imaginava até aqui, mas é fluída, ou seja, cada vez mais fica claro  que os conceitos não têm perfil e nem formato determinados, tudo dependendo do contexto em que estiverem inseridos, quer dizer, do sistema a que pertencerem. Sobre a visão sistêmica dos fatos já escreveram em 2014 Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi, respectivamente astrofísico e biólogo, em seu livro A Visão Sistêmica da Vida, defendendo a tese de que vivemos numa “rede de eventos interconectados de forma não linear” e que, por isto mesmo, nada pode ser analisado isoladamente, mas tudo deve ser considerado no conjunto a que a parte em questão estiver conectada. Assim, parece certo dizer que o cartesianismo deverá ser substituído pelo holismo para que as alterações da estrutura social possam ser entendidas e aceitas.

A condição “fluída” da nova estrutura social evita que perspectivas e frustrações ocorram de forma definitiva, já que a fluidez permitirá a adaptação do evento ao que o sistema, no caso, demandar ou permitir, o que não será fácil, pois equiparar-se-á a aprender a nadar em mar revolto, sem afundar!

Para os ocidentais, essa mudança de posição em relação à vida, é ainda mais difícil do que para os orientais, conforme já comentado, mas é absolutamente necessária para que não soçobremos. Além do desafio em questão resta, ademais, o problema das gerações. Escreve Zygmunt Bauman (Capitalismo Parasitário – Zahar – p.62): “a incompreensão recíproca entre gerações, entre os velhos e os jovens e a desconfiança que isso gera, têm uma longa história. Seus sintomas podem ser encontrados facilmente em tempos bem antigos. Mas a desconfiança intergeracional assumiu importância muito maior na era moderna, marcada por mudanças permanentes, rápidas e profundas das condições da vida. A aceleração radical do ritmo das mudanças, característica dos tempos modernos, permitiu que se percebesse no curso de uma única vida humana que ‘as coisas mudam’ e não são mais como antes: trata-se de uma constatação que sugere uma associação  (ou nexo causal) entre mudanças da condição humana e a sucessão de gerações.”

O conflito intergeracional, contudo, assume novos contornos nos tempos atuais, porquanto, se antes o desafio dos jovens era o de dar novas definições a conceitos até ali aceitos como válidos até mesmo para eles que, aparentemente, só queriam colocar sua marca nos mesmos conceitos impostos pelos ”velhos”,   o que se observa agora, é que as gerações estão em luta com a nova estrutura social que afeta a ambas, a dos “velhos” e a dos “jovens”, igualmente. É certo que os últimos estão mais preparados para aceitar o novo, mas o choque subjetivo, pode-se dizer, é muito parecido em todos.

O QUE FAZER?

Parece que o que está faltando para remodelar o comportamento das pessoas que até aqui eram mais passivas em relação à estrutura social, será mostrar-lhes que, doravante, ao invés de atitudes reativas – respondendo à propaganda, por exemplo – deverão assumir o polo ativo das relações sociais, aplicando seu senso crítico a tudo o que lhes for ou vier a ser sugerido. Em suma, fazer renascer o indivíduo na massa social e ser capaz de mover-se na rede de eventos interconectados sem fixar-se a um determinado evento, mas sabendo como administrar o sistema, tal como uma aranha o faz circulando por sua teia.

Dado ao estado líquido da estrutura social contemporânea, líquido no sentido característico da água que se adapta e molda a qualquer ambiente a que for submetida, cada indivíduo terá de aprender a reconhecer-se como  ente isolado dos demais, cujas decisões somente a ele importam. Assim, deverá ter ideias inusitadas e ousadia para implementá-las. Deverá ser diferente do esperado, surpreendendo seus circundantes sempre de forma positiva.

Não é segredo que o ensino em todos os países, faliu no geral e que empregadores de grandes companhias não mais querem ver currículos com listas de certificados e diplomas que nada revelam da capacidade do candidato. Já é usual deixarem de lado os currículos e pedirem confirmação da capacidade por meio de provas no ato da entrevista e isto ocorre porque um ensino rígido em ambiente líquido, não poderá sobreviver por muito tempo. Diz Barbara Bigarelli, jornalista, (jornal Valor Econômico de 29 de outubro, p.A16) que “sabemos que aquelas competências que nos trouxeram até aqui não são aquelas que nos levarão para o futuro”.  Assim entendem os RHs das empresas, portanto, candidatos  deverão ter isto em mente ao buscarem empregos.

A mesma revolução conceitual deverá ocorrer no setor da educação, porquanto, a forma atual de ensino não mais cumpre seus objetivos. Já foi dito por Andreas Schleicher responsável pelo PISA, programa de avaliação de estudantes de 15 anos no mundo, que os professores continuam ensinado da mesma forma em que aprenderam, ou seja, olhando para o passado e não para o futuro, Contudo, fazê-los mudar a direção de seu olhar, demandará reformular todos os conceitos educacionais, visto que  será difícil ensinar a alguém ensinar algo que nem ele aprendeu, ou seja, adivinhar o futuro!

A única forma viável de fazer tal mudança, ao que parece, será alterar o método de expor para o de ensinar a aprender, quer dizer, dotar os estudantes e a juventude em geral dos meios para gerir sua própria aventura do conhecimento e isto, presumivelmente, é possível via do estímulo, a partir da mais tenra idade dos jovens, para que desenvolvam aquilo que é nato a todos, quer dizer, a curiosidade, a imaginação, estas temperadas pela dialética. Então, a curiosidade, tão natural nas crianças, as levará, sob a orientação do novo método a ser desenvolvido nessa direção, a buscar  respostas às perguntas que fervilham em seus pequenos cérebros e se não as encontrarem, as imaginarão. Daí em diante, respeitados os diferenciais dos níveis etários, submeterão o conteúdo à dialética que porá à prova a tese em contraposição à antítese, gerando uma síntese que automaticamente se transformará em nova tese. Este processo será contínuo e permanente e a orientação dos professores para isto treinados, deverá limitar-se a evitar que o processo pare, seja por que motivo for, transformando os alunos em parceiros de igual nível, já que estarão explorando juntos o futuro, até então desconhecido a todos.

Desde logo, isso implicará em tornar líquido o processo como todo o restante dos eventos interconectados, exigindo dos professores, pais e dos próprios jovens já então, como dito, não mais chamados de alunos, porquanto participantes ativos da busca do conhecimento, uma renovação total dos conceitos pedagógicos. Uma vez aceita esta direção pedagógica, imagina-se que, no mínimo duas gerações serão necessárias para a fixação dos novos conceitos e o treinamento dos orientadores – não mais professores – e a aceitação dos pais e jovens envolvidos.

CONCLUSÃO

É certo que, para cada área da estrutura social que se olhe, o holismo sobrepuja o cartesianismo e por mais lento que venha a ser o processo de mudança, parece caminho sem volta, ao qual deveremos aderir ajudando a implementá-lo.

Ainda de acordo com Zygmunt Bauman (op.cit p.60), “A arte de viver num mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida. E o mesmo  vale também para a arte ainda mais difícil de preparar os homens para esse tipo de vida.”

A mídia contemporânea, na tentativa de levar todos a consumir ao máximo para gerar lucros somente para uma pequena parcela da sociedade – a que é dona do capital -, está tirando proveito dessa hipersaturação de informações para modificar o processo cerebral dos consumidores, pois como será fácil notar, a ênfase maior na propaganda de produtos, hoje em dia, é no seu fácil e necessário descarte para a aquisição “do novo” ou a “da nova moda”, para que o indivíduo – consumidor – não seja alijado do grupo. Assim, a antiga ênfase da propaganda que levava o consumidor a “comprar”, para sentir o prazer respectivo, deve tê-lo levado a manter o bem adquirido por mais tempo para prolongar o prazer da posse, o que passou a incomodar os fabricantes que, talvez por isto mesmo, direcionaram tal “prazer” para o descarte!

Enfim, não seria possível esgotar o assunto num artigo limitado como o presente, mas o que deverá ficar claro a todos, “velhos” e “jovens” contemporâneos, é que no lugar do processo mental cartesiano deverão todos colocar o holismo – visão sistêmica dos eventos – em seu lugar e admitir que vivemos, hoje, num sistema líquido o qual deverá ser entendido e aceito, porquanto é irreversível, mantendo acesa a chama da dialética para que o senso crítico possa ser aplicado a todos os eventos aos quais cada um for submetido ou por eles desafiado.

Wilmar Eppinger

OAB-PR 2717

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